O texto abaixo contém spoilers da trama de ‘O Babadook’.
Em O Babadook, dirigido e escrito por Jennifer Kent, Amelia (Essie Davis) é uma mãe dedicada que tem tido problemas com o seu filho Samuel (Noah Wiseman). Quase todas as noites o menino não consegue dormir tranquilamente, pois acredita que há um monstro lhe perseguindo. Amelia, pacientemente, verifica com ele todos os lugares da casa com o intuito de lhe provar que o monstro não está lá, o que já havia se tornado um ritual diário.

Na escola, Samuel apresenta problemas de comportamento. A coordenadora pedagógica propõe para a sua mãe que ele tenha constantemente um tutor exclusivo enquanto estiver lá. Amelia recusa a sugestão, pensa que o filho necessita apenas de um pouco de compreensão. Um dia o menino encontra na casa um livro de terror infantil chamado “O Babadook”,e logo nas primeiras, páginas Samuel se angustia com o monstro. Segundo o livro, após invocá-lo, ele tirará a sua roupa engraçada e quem o vê-lo, não vai querer continuar vivo. Depois da mãe ler isso o menino chora copiosamente.
A mãe do garoto claramente está exausta e perdida; ela não consegue mais lidar com as dificuldades do filho. Depois de ler a estranha publicação, parece que Samuel ficou ainda mais perturbado e agressivo, além de manifestar alguns episódios convulsivos. Amelia, em algumas situações, se mostra depressiva e sem forças para suportar o seu trabalho e os cuidados com o menino. Em certos instantes, ela relembra os momentos com o marido falecido e contempla os beijos dos casais apaixonados. Apesar de já terem se passado seis anos desde a sua morte, ela não conseguiu superar. Ele morreu em um acidente de carro quando estava levando Amelia para o hospital, já em trabalho de parto.
O livro torna-se culpado pelos problemas do menino. A mãe, em um momento de fúria, rasga a obra e a joga fora. Alguns dias depois, alguém bate na porta de casa e não há ninguém, somente o livro, que foi remendado, mas com as palavras das frases trocadas. Nele está escrito: “Quanto mais me evitar, mais forte vou ficar”. Além de um pedido para entrar e um aviso de que estava crescendo debaixo da sua pele. As ilustrações são macabras com imagens de uma mulher degolando um menino e essa mesma mulher se suicidando. Mesmo depois de queimar o livro, Amelia continua vendo e ouvindo Babadook por todos os lados.
No decorrer do filme, pode-se pensar que as perturbações sentidas tanto por Amelia quanto por seu filho não são sobrenaturais, proporcionadas por um livro amaldiçoado. Babadook é uma metáfora referente a morte do pai de Samuel, esse é o verdadeiro monstro que os perturba. As alucinações e os terrores noturnos manifestados pela dupla são o resultado de um luto não elaborado, tornando-se patológico. Em alguns momentos, quando citam o marido morto, Amelia se incomoda bastante e não quer tratar sobre esse assunto.
A origem do mal através do luto: enfrentando os monstros internos
No texto “Luto e Melancolia” (1915), Freud descreve as reações possíveis frente a perda de pessoas queridas. Segundo ele, há um movimento inconsciente de negar a perda e de não conseguir deslocar o amor para um novo objeto, mantendo-se fixado nesse morto. Em alguns casos, essa recusa de enfrentar a morte pode ser tão intensa, que o sujeito pode chegar a alucinar, como a mãe e o filho do filme analisado.
Provavelmente, Amelia está passando por uma depressão, sua insônia, falta de energia, baixa autoestima, confusão mental e a dificuldade em abordar o falecimento do marido, condiz com este quadro clínico. Outro aspecto importante é que talvez a protagonista se culpe inconscientemente pelo acidente, pois se não tivesse entrando em trabalho de parto naquele momento, provavelmente o marido ainda estaria vivo.
Evidentemente, Amelia não poderia ter evitado a tragédia ou supor tamanha desgraça. Com o peso dessa culpa, é possível que ela tenha transferido parte dela para o filho, o que justificaria os sentimentos ambíguos em relação a ele. A ilustração distorcida da mulher matando uma criança e se degolando em seguida, é uma representação do seu desejo inconsciente em eliminar o filho e de se suicidar.
No texto citado há uma frase-chave: “A sombra do objeto recai sobre o ego”. No caso de Amelia, Babadook é a sombra da morte do marido recaindo sobre ela. De fato o monstro infantil esteve o tempo todo debaixo da pele da protagonista, apesar de ter despertado tardiamente com as crises de Samuel, ele nunca saiu de dentro dela.
Uma outra questão importante para a Psicanálise, além da relação mãe e filho, é a posição em que a criança fica referente ao desejo dos pais. No decorrer de seu desenvolvimento, ela passará por um longo caminho até se tornar um sujeito autônomo de suas ações. Enquanto isso não ocorre, a criança é totalmente dependente de seus pais e costuma ser um objeto de investimento dos mais variados sentimentos, do amor ao ódio. Um menino, por ainda não ter um psiquismo bem formado tende a ser capturado fortemente pelas questões de seus pais. Samuel, inconscientemente, absorveu a angústia de sua mãe, por ainda não ter recursos psicológicos suficientes, manifestou os sintomas de agressividade, convulsões e alucinações.
Para a Psicanálise, a angústia não tem nome e consequentemente não há uma representação para ela. O menino ao deslocar essa angústia da relação entre ele e sua mãe para Babadook, há uma tentativa em dar um formato para este sentimento aterrador. Por outro lado, sua mãe já completamente transtornada, se enredou na fobia do filho pelo monstro imaginário.
Perto do fim, no porão da casa, Amelia vê o seu ex-marido, mas na verdade era o monstro disfarçado que a “possui” e toma o controle de seu corpo. Em seu surto, Amelia tenta matar o filho para que ele conheça o pai e para que ambos possam encontra-lo na vida após a morte. Samuel, bravamente, enfrente a mãe e a captura com suas armadilhas, em seguida a amarra no chão. Depois de quase sufocá-lo, em parte ainda presa, Amelia cai em si, consegue exorcizar o monstro e o vomita. Nesse momento ela o encara de frente e o manda embora. Babadook foge e se refugia novamente no porão da casa.
Freud e Jung, em alguns de seus escritos, fazem uma analogia do aparelho psíquico com uma casa. Para eles, a casa representa o ego de um sujeito, o sótão seria o cômodo que simboliza a racionalidade e os pensamentos abstratos, enquanto o porão representa o inconsciente. O monstro retornando para o inconsciente simboliza um controle sobre a angústia e o fantasma da morte do marido, entretanto, mesmo depois de domado, ele continua lá, habitando a casa.
Na última cena, a mãe vai visitá-lo e alimentá-lo no porão, ou seja, elaborar um luto implica em um constante enfrentamento, caso contrário, Babadook tornará a incomodar. Lidar com monstros internos costuma ser a pior de todas as batalhas.