De Olhos Bem Fechados’: uma aventura erótica na busca pelo desejo (análise)

Análise com spoilers do filme De Olhos Bem Fechados (1999)

Kubrick, o mestre perfeccionista

De Olhos Bem Fechados (1999) foi o último filme dirigido e produzido pelo mestre Stanley Kubrick, que faleceu dias depois da estreia, fechando com chave de ouro a sua obra. O filme demorou cerca de três anos para ser concluído e Kubrick já pensava em fazê-lo desde 1971, quando comprou os direitos da do livro Traumnovelle, escrito por Arthur Schnitzler, em 1929. O diretor, famoso pelo seu excesso de cuidado e perfeccionismo, demorou 400 dias para concluir as filmagens. Chegou a criar uma imensa cidade cenográfica imitando Nova York com um incrível esmero.

A escolha dos atores para fazerem os papeis do casal protagonista já foi um tremendo acerto: Tom Cruise como o Dr. William Harford e Nicole Kidman como Alice Harford. Naquela época, talvez eles representassem o cúmulo do sucesso hollywoodiano, ambos estavam no auge da carreira e faziam um belo casal. De fato, essa não foi uma escolha aleatória, principalmente pelo filme tratar uma desventura amorosa e uma nítida crise entre os personagens. Provavelmente, Kubrick quis mostrar que até mesmo o melhor dos casais pode passar por grandes conflitos.

Um casal em crise

A trama de De Olhos Bem Fechados começa com uma cena bem peculiar, o casal está se arrumando para uma festa e não poupa o telespectador de assistir Alice levantando do vaso e se limpando, enquanto William (Bill) se olha no espelho. Talvez essa cena tenha o intuito de mostrar como a relação do casal se tornou banal e fria, dessexualizada e carente de erotismo.

Durante a festa, Bill e Alice se afastam, em pouco tempo, ela fica alterada com o champagne e vai para a pista. Sua postura corporal já diz que ela está aberta a conhecer outro homem, apoiada em uma mesa com os braços para trás e o tronco empinado. Como se estivesse se oferecendo para um flerte. Rapidamente, um homem mais velho se aproxima dela e então começam a conversar e dançar. Claramente ele flerta com Alice e ela dá alguma abertura para ele, ainda que esclareça ser casada com Bill.

Em compensação, Bill também foi assediado por duas moças, uma delas inclusive quase o beija. Ele chegou a desfilar de braços dados com as duas, uma de cada lado, como se elas fossem troféus. Enquanto ele estava hipnotizado pelas moças, foi chamado às pressas, pois uma mulher havia desmaiado devido a uma overdose. Ela injetou uma combinação de cocaína com heroína. Quando Bill a encontrou, estava caída e completamente nua. Mais uma vez, Kubrick joga com a nudez dessexualizada. Em seu papel de médico, Bill precisa manter uma conduta ética e analisá-la como um corpo doente. Depois do susto, Bill conseguiu acordar a moça. Pra terminar a “consulta”, o médico lhe recomenda terapia, em um momento completamente inadequado.

Depois da festa, Alice dispensa o homem que a assediou. O casal foi para a casa e aparentemente iniciaram um sexo, mesmo enquanto Bill a beijava, ela parecia estar incomodada. No dia seguinte, a rotina do casal retorna a sua pacata normalidade. A noite, enquanto estavam na cama e fumando maconha, conversaram sobre a festa. Então ambos se questionaram sobre os flertes ocorridos.

Durante a discussão, Bill expõe o seu ponto de vista ingênuo e machista a respeito das mulheres. Acredita que enquanto apalpa as suas pacientes em seu consultório, elas não sentem nada, pois para ele, as mulheres apenas buscam o amor e a segurança de um relacionamento. Como se elas não fossem capaz de desejar ou sentir atração sexual por desconhecidos. Bill acredita que o casamento é capaz de trazer tamanha garantia, que não há a possibilidade do ciúme ou de sua esposa se sentir atraída por alguém. Quando ela foi assediada na festa, ele não percebeu o quanto ela permitiu e se sentiu atraída pelo outro homem.

Desejo e errância 

Ao notar a segurança de Bill e sua possessividade, Alice relembra um incidente ocorrido em uma viagem de férias. Uma vez quando estavam no hotel, ela viu um marinheiro, por quem sentiu uma enorme atração apenas por ele ter olhado pra ela. Se ele tivesse ido atrás dela, ela prontamente se entregaria a ele e largaria tudo. Naquele momento da viagem, o casal traçava planos para o futuro, apesar de amá-lo, havia também um sentimento de ternura e tristeza.

A revelação de Alice foi o gatilho para que todos os dogmas construídos por Bill desabassem. Ele passou a imaginar cenas de sua esposa transando com o marinheiro. O que desencadeou a aventura inglória de Bill e a trama principal em De Olhos Bem Fechados. Depois de atender um chamado de emergência, o perturbado médico vagou pelas ruas de Nova York e se deparou com um grupo de jovens bagunceiros. O que lhe causou muito pavor, pois eles mexeram com Bill e um deles esbarrou gratuitamente. O protagonista reagiu muito mal, como se nunca tivesse saído pelas ruas e visto as mazelas do mundo. Talvez tenha permanecido por muito tempo em sua cúpula, rodeado pelas festas e pela elite.

Em seguida, uma prostituta se aproxima dele e o convida para entrar, um tanto desconcertado, aceita timidamente o convite. Ironicamente não sabe o que fazer com ela, chegou a pedir sugestões. Quando a prostituta beijou Bill, Alice ligou para ele perguntando se iria demorar. Graças a culpa, o médico desiste de transar com a moça e a paga mesmo sem ter transado com ela, afinal, Bill tende a agir da forma mais correta possível.

A aventura erótica do médico em De Olhos Bem Fechados não parou por aí, e ele decidiu encontrar seu amigo pianista em um bar de jazz. Durante a conversa, o pianista contou que toca em uma festa sexual luxuosa em uma mansão com belas mulheres. Entretanto, esse é um evento secreto, para poucos convidados, para entrar é preciso ter uma senha e usar uma fantasia com máscara. A princípio o pianista não queria que Bill fosse, mas depois de muita insistência ele passou a senha.

Bill conseguiu entrar na mansão e lá presencia um estranho ritual. Um sacerdote estava no meio de uma roda de mulheres mascaradas com uma capa. Enquanto o sacerdote pronunciava palavras estranhas e circulava entre elas com um defumador. Em um dado momento, todas se levantam e jogam no chão as capas e ficam seminuas. Encerrado o ritual, elas escolhem um homem e andam pela mansão de braços dados.

Apesar do médico ter encontrado uma parceira, rapidamente um outro homem a rouba e Bill passa a andar pela mansão sozinho. Durante o passeio, em todos os cômodos há mascarados transando. Dessa vez os corpos são sexualizados, porém continuam sem erotismo. As máscaras, além de impedir que se veja a expressão de prazer das pessoas, impossibilita o beijo, revelando-se assim, um espetáculo bizarro e animalesco. Quem não estava transando permaneceu em uma posição de espectador.

Durante a festa, uma moça perguntou uma segunda senha, da qual Bill não soube dizer e então, foi desmascarado. Na frente de todos os convidados foi exposto como um penetra. Uma mulher se ofereceu em “sacrifício” para poupar o protagonista, entretanto, não é possível saber o que realmente houve com ela. O sacerdote então diz para Bill nunca mais voltar e nem falar nada a ninguém sobre o estranho evento. Caso contrário, as consequências seriam terríveis para ele e sua família.

No final da madrugada, Bill voltou para a casa. Quando estava no quarto, Alice estava dormindo e gargalhando. O médico a acordou e ela lhe contou o seu sonho em um tom de arrependimento: nele ela reencontrava o marinheiro, o que foi mencionado na briga. Além disso ela transava com ele com outros vários homens assistindo, pouco depois ela teve relações com vários desconhecidos. No sonho, ela acreditava que a qualquer instante, Bill poderia flagrá-la e então ria o mais alto que podia.

No mesmo dia a tarde, decidiu investigar sobre a estranha festa, foi atrás de seu amigo pianista, mas não o encontrou. Segundo uma testemunha foi visto com dois homens mal encarados e desapareceu, como se tivesse sido sequestrado ou assassinado. Novamente foi até a mansão e mais uma vez recebeu um aviso que se continuasse com a sua busca, haveria graves consequências. Pouco depois, notou que estava sendo seguido, o que lhe assustou bastante. No jornal leu sobre uma moça que havia sido assassinada, por ser médico, conseguiu encontrar e ter acesso ao seu corpo. Era justamente a mulher que havia se sacrificado por ele, a princípio.

Victor, o anfitrião da primeira festa ocorrida no início do De Olhos Bem Fechados, chamou Bill para uma conversa. Confessou para o médico que havia sido ele quem o denunciou na segunda festa, ele estava lá e viu todo o ocorrido. Na verdade a intenção era amedrontá-lo, pois aquela festa era realizada para a elite e não queriam que Bill falasse dela por aí. O pianista não foi assassinado e a moça encontrada morta, era uma prostituta, a que ele socorreu no início da história. Ela estava fadada a morrer por overdose. O seu “sacrifício” foi uma encenação.

No final do filme, o protagonista retorna para a sua casa e vê a máscara que utilizou na festa sinistra ao lado de Alice. Diante disso, caiu em uma crise de choro e contou à esposa o que havia feito na noite anterior. Após a conversa, se perdoaram, mas precisaram encarar a crise da relação, suas respectivas faltas e “traições”, tenham sido elas sonhadas ou ensaiadas. Por fim, Alice diz para ele que precisam urgentemente transar.

O que fazer com o desejo?

De Olhos Bem Fechados, retrata com muitas minúcias as tentativas frustradas de Bill em encontrar o seu desejo. Ele representa o típico sujeito bom moço que acredita em modelos quadrados de relacionamentos, como se o casamento com uma mulher bonita e dedicada como Alice fosse o suficiente. A partir do desejo de Alice pelo marinheiro, Bill foi em busca de outras mulheres em uma espécie de vingança, como se tivesse o direito em desfrutar os prazeres com desconhecidas.

Por ser um típico sujeito em conflito, diante da possibilidade de transar com outra mulher, ele falha, seja por não conseguir admitir ou por se bloquear ao estar frente-a-frente com uma. O que o médico não compreendeu é que não é necessário trair a esposa para desejar outra mulher, nem toda fantasia precisa ser realizada ou atuada. Em sua pobreza psíquica, a fantasia é rudimentar, talvez inexistente. Para ele, a esposa é a única mulher a ser desejada, caso contrário ela deve ser traída, o que é bastante binário e infantil.

Não é nada raro muitos homens terem dificuldade em sentir atração sexual pela mulher que amam, principalmente depois delas se tornarem mães. Em muitos casos, há uma cisão da figura feminina, entre a virgem santificada (Nossa Senhora) e a erótica prostituída. Alice, ao confessar o seu desejo pelo marinheiro, não disse que queria efetivamente traí-lo, mas sim demonstrar que as mulheres não buscam somente nos homens um casamento.

Durante a primeira festa, o casal talvez não estivesse a procura da infidelidade, apesar dos flertes, mas sim o jogo da sedução, o erótico e principalmente desejavam desejos e consequentemente, serem desejados. Afinal, o tesão entre Bill e a Alice havia esfriado consideravelmente.

Há uma diferença significativa entre eles, Alice parece ter mais consciência a respeito de seus desejos e que não precisa colocá-los em prática. Bill já é mais ingênuo, não compreende a capacidade de deslocamento do desejo e o persegue como uma indenização pela provocação de sua esposa. No fundo, ele não desejou nenhuma das mulheres que esbarrou em sua epopeia. Tentou ser oportunista com as que se ofereceram para ele, mas não sabia o que fazer com elas. Como no caso em que encontrou a prostituta.

Existem interpretações em que acredita-se que De Olhos Bem Fechados seja um sonho de Bill. Essa é uma visão interessante, pois o filme é permeado por muitas situações surreais, principalmente na segunda festa em que todos estão mascarados e as mulheres ficam nuas. Por esse caminho, é possível pensar que a história representa um sonho superegóico. Segundo Freud, o superego é uma instância repressora, que impede ou dificulta a realização de certos impulsos, principalmente os sexuais. O superego é uma instância introjetada do meio social que restringe a satisfação dos desejos em nome de uma adequação ética e moral.

Bill, no fundo, não queria trair Alice, apesar de ter flertado com algumas oportunidades. Algo sempre ocorria que o impossibilitava de transar com outras mulheres. Quando tentou ter relações com a prostituta, sua esposa ligou bem na hora. Posteriormente descobriu que a moça era soro positivo. Durante a segunda festa quase foi para o quarto com uma moça, mas um desconhecido a roubou dele e Bill ficou inerte. Talvez ele tenha tentado fechar os olhos para a sua racionalidade, ainda assim, não obteve êxito em se entregar ao seu desejo.

A festa de máscaras em si já é uma metáfora significativa, perante um desejo muitas vezes os sujeitos se escondem, não conseguem se desnudar. Se revelar para o próprio desejo pode ser perigoso e sofrível. As máscaras e as fantasias contribuem para esse distanciamento. Quando confessou a sua atração pelo marinheiro, Alice  se sentiu culpada por tê-lo desejado, por outro lado, teve medo de nunca mais vê-lo. Apesar do sofrimento que a manifestação de um desejo pode causar, escondê-lo, pode trazer ainda mais dor. Ao ser recalcado, o significado desse desejo pode ser encoberto, mas o afeto dele tende a se transformar em sintoma para o corpo, pensamentos ou comportamentos.

Bill talvez não saiba desejar as mulheres, por mais que goze da beleza delas, de seus corpos ou da atitude insinuante, sua trajetória é carente de erotismo. Há belos corpos femininos nus em De Olhos Bem Fechados, mas sem charme ou vida. Durante todo o filme, ele se coloca em uma posição de objeto. Em nenhum momento procura conquistar alguma delas, permanece em uma posição de espera. Talvez até por ser bonito ou por ser mais cômodo, não se arrisca em ser rejeitado, se contenta com o assédio delas.

O filme pode ser um sonho, justamente como tudo gira ao redor de Bill, as mulheres o procuram sem esforço e ele conseguiu sair ileso de todas as enrascadas. Como diria Freud, é impossível morrer nos sonhos, pois essa ideia é inconcebível para o inconsciente. Por sorte, ao final do filme, tenha aprendido a desejar a sua esposa e ter se contentado com as faltas dela e com a impossibilidade de ter outras amantes, mesmo que tenha sido pela via da culpa.

O que fazer com o desejo, então? Por um lado é o que nos impulsiona para a vida e para as relações humanas. Por outro, é algo capaz de gerar grandes dúvidas e angústias. É possível barganhar com ele? Provavelmente não, por mais que se tenha consciência dele, ou nos deixamos levar ou resistimos. E esse conflito, estamos fadados a encarar até o final da vida, não há escapatória.

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