Em um determinado momento, logo no início de Blade Runner 2049, dois personagens conversam calmamente em meio a uma atmosfera preparada para que lentamente, a trama se desenrole, leve o tempo que precisar. Assim são as duas horas e quarenta e três minutos de filme: uma ambientação em nível de excelência e uma narrativa que prende a atenção pela história, aliada a um incrível deleite visual.

O longa se passa trinta anos após os eventos do primeiro filme, acompanhando um novo blade runner, o policial K (Ryan Gosling), do Departamento de Los Angeles. Após desenterrar um segredo que tem o potencial de mergulhar o que sobrou da sociedade em caos, sua descoberta o leva a uma jornada em busca de Rick Deckard (Harisson Ford), um antigo blade runner da LAPD que está desaparecido há três décadas.
O diretor Denis Villeneuve não para de realizar bons filmes. Basta pegar dois filmes de sua fase canadense, Polytechnique e Incêndios, além dos recentes e ótimos A Chegada e Sicario. Isto para não citar (mas já citando) Os Suspeitos e O Homem Duplicado. Aqui o diretor consegue entregar não somente uma sequência que reverencia o primeiro filme mas também tem identidade própria. É um filme de Villeneuve e definitivamente, sua marca pessoal está presente durante o longa.
Em Blade Runner 2049, Villeneuve entrega sua visão definitiva do longa direto nos cinemas. Tudo o que foi pensado está ali, sem versões finais ou edições extras. Uma viagem que inclui uma imersão visual contemplativa e única, diga-se. A câmera não é apressada e se move com elegância, leve o tempo que precisar. Além disso, há uma cena envolvendo sexo que certamente é diferente de tudo o que já vimos no cinema.

Outro fator que é um ponto a favor é a ótima dobradinha com o diretor de fotografia Roger Deakins, que presenteia o público com enquadramentos espetaculares e uma profusão de cores e texturas que sempre tem algo a dizer. Nada é escolhido por mero acaso e as cores conversam com a narrativa, ora assumindo um tom mais frio, ora de uma forma mais quente e saturada.
Nada seria tão eficiente se não fosse destacado o belíssima direção de arte do filme, que segundo o próprio Deakins disse em uma entrevista recente, foi o setor com quem mais trocou ideias sobre o filme. Além disso, os efeitos especiais funcionam, são fluidos e nada soa artificial ou exagerado. As vezes o menos é mais e Villeneuve já provou isso em A Chegada.
A história dá tempo ao tempo para tudo mas nunca é cansativa. Há um investimento considerável para que conheçamos o personagem de Ryan Gosling e ele entrega uma atuação da medida do que o seu personagem pede. A frieza e o cansaço de K são sentidos e isso torna o longa ainda mais atrativo, ao nos conectarmos com seus dramas e anseios.
O enredo foca pripordialme no policial que tem como principal missão caçar replicantes que vivem escondidos pelo país. Há de se destacar duas coisas em K: além da já citada atuação de Gosling, a jornada pela qual ele precisa percorrer é investigativa e envolvente. Isso torna o longa interessante, ao conservar uma pegada noir, sem perder o estilo futurista implementado anteriormente e aprimorado aqui. Como nada é apressado, isso facilita o envolvimento com o personagem e com o filme. É bom lembrar que cada momento e cada cena precisam ser saboreadas lentamente, sendo K o responsável por essas ações cuidadosamente executadas.
O primeiro Blade Runner é constantemente referenciado através da estética, desde pequenos, porém importantes elementos, até personagens cruciais do filme anterior. Ambos fazem a trama avançar. Isso mostra que a reverência de Villeneuve ao material de origem não torna o filme essencialmente dependente do primeiro longa mas trata a si mesmo como uma continuação a altura do original, com a grandiosidade que 2017 pode proporcionar a um filme de ficção científica. Blade Runner 2049 é a prova de que uma continuação pode ser magnifica e ao mesmo tempo respeitar o material de origem.
Se em 1982 o longa do então diretor e agora produtor Ridley Scott discutia o sentido de ser humano, aqui a discussão é ampliada para o conceito de quem é ou não humano. O papel das grandes corporações também se faz presente, além do rico e variado mundo que em 2049 mantém o padrão globalizado e multicultural, ao passo em que conserva seu tom esfumaçado e decadente. Algo que o recente Ghost in the Shell tentou emular recentemente, sendo eficiente em sua estética mas falhando justamente em seu conteúdo. Blade Runner 2049 é uma experiência de imersão visual e conceitual. É preciso ver, sentir e absorver. E se possível, revisitar.

Quanto a trama em si, não é necessário dizer muita coisa, sob o risco de estragar a experiência. Há uma revelação que logo de cara é fornecida ao público mas os grandes momentos do filme em termos de virada de perspectiva deixam isso de lado. Mas Blade Runner 2049 não é um filme ancorado em plot twists, é bom que se diga. As sensações em são alteradas constantemente. Real e imaginário, homens e replicantes, tudo se mistura em uma experiência de percepção visual, amparada por discussões filosóficas que não caem no campo da alta pretensão. O filme é equilibrado e sabe como dosar suas ações.
Mas não temos aqui um filme de ação. Ela está presente no máximo em 20% da trama, não sendo essencial mas quando vem, cumpre seu papel. Villeneuve sabe como ambientar uma história e como poucos, mantém o ritmo constante. É claro que o mérito também deve ser dado a edição bastante sólida de Joe Walker, indicado ao Oscar em A Chegada e Sicario, ambos com Villeneuve na direção, além da música de Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch.
Quem também possui uma participação importante é Harrison Ford. Não há muito tempo de tela se comparado aos novos personagens mas Rick Deckard tem um papel importantíssimo a desempenhar, fazendo parte inclusive de uma das grandes reviravoltas que o filme dá. Em termos de atuação, Ford nos dá o seu melhor papel em anos.
Muitos personagens são apresentados mas com pouco desenvolvimento. Neste ponto, há uma certa compreensão pelo fato de que a maior parte deles está ali para mover a trama. Dave Bautista, Lennie James e Mackenzie Davis são bons exemplos de participações que são limitadas mas com consistência. Com mais tempo de tela, Robin Wright consegue impor uma boa presença, enquanto Sylvia Hoeks dá um tom completamente ameaçador e imprevisível a sua personagem. Jared Leto não inventa a roda mas há de se reconhecer que sua composição como Niander Wallace é impecável. Mas é de Ana de Armas a grande atuação entre os coadjuvantes, muito por conta do desafio que é compor uma personagem como a sua.
Como continuação, Blade Runner 2049 é um filme que cumpre seu propósito como poucos longas conseguiram fazer. Ele consegue ser grandioso sem deixar de beber diretamente na fonte do material em que se baseia, tornando-se uma experiência impactante para novos e sobretudo os antigos fãs. Se Villeneuve já havia entregue ótimos filmes em sequência, aqui ele atinge o ápice com sua obra-prima cinematográfica. Pode até ser que seja cedo para tal avaliação mas poucas vezes, pelo menos na última década, uma ficção científica impactou tanto em 2049.