‘Watchmen’: o lado sombrio de um grupo de heróis

Análise com spoilers de Watchmen (2009), de Zack Snyder

Uma década apreensiva 

A década de 80 costuma ser lembrada como um período sombrio da contemporaneidade. A guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética parecia interminável, permeada pelo fantasma da possibilidade de ataques nucleares por ambos os países. No aspecto econômico, muitos países passavam por uma crise considerável, tanto a América Latina, quantos Estados Unidos, Europa e o restante do planeta. A bonança entre a década de 40 e 70 se esgotou, o capitalismo mostrava novamente suas fraquezas, afinal as crises são cíclicas. Não é à toa que os anos 80 são lembrados como a década perdida, uma época de poucas perspectivas, alguns retrocessos e a paranoia de uma guerra nuclear entre as maiores potências do momento.

No universo dos quadrinhos, esse clima aterrador não poderia passar desapercebido, a partir das frustrações e receios da população, os próprios super-heróis passaram por mudanças revolucionárias e passaram a ser concebidos de uma maneira mais realista e humanizada. Frank Miller inovou o Batman com a saga do O Retorno do Cavaleiro das Trevas, retratando o herói de uma forma mais agressiva e implacável.

Ao escrever Watchmen , entre 1986 e 1987, Alan Moore mostrou os super-heróis por uma outra perspectiva, mais madura e nostálgica. Em alguns momentos os torna amorais, cruéis, narcisistas e fascistas. A história começa com o grupo de heróis aposentados pelo governo, graças a uma lei. A partir de um certo momento, devido aos excessos violentos dos mesmos, se tornaram desnecessários e ameaçadores. No filme Watchmen (2009) adaptado diretamente da histórias em quadrinhos, com poucas mudanças, o diretor Zack Snyder conseguiu transmitir o clima de decadência da década de 80 sem distorcer a essência da história.

Um resumo da desventura

Para aumentar o clima de tensão da narrativa, o filme começa com um programa de televisão em que especialistas especulam a respeito da probabilidade dos soviéticos atacarem os Estados Unidos. Na tentativa de prever a eclosão da guerra, inventou-se um relógio para estimar quanto tempo faltaria o conflito iniciar, o chamado relógio do juízo final.

O herói aposentado, Edward Blake, o Comediante (Jeffrey Dean Morgan), estava assistindo o programa até ser atacado dentro de sua casa e ser brutalmente assassinado, apesar da tentativa em se defender. Um outro vigilante aposentado ao saber do homicídio, vai até a cena do crime para investigar o ocorrido, ele se chama Walter Kovachs, o Rorschach (Jackie Earle Haley). Ele é conhecido assim devido a sua máscara com os desenhos do famoso teste psicológico.

Rorschach se impressionou como alguém foi capaz de matar o Comediante, pois ele era alto, forte e sabia lutar. Rapidamente desconfia que alguém quer despachar os outros Watchmen e busca avisar a todos. O primeiro de sua lista é Dan Dreiberg, o Coruja (Patrick Wilson), uma espécie de Batman mais ingênuo. Por sua vez o Coruja foi falar com Adrian Veidt, o Ozymandias (Matthew Goode), o único do grupo que revelou a sua identidade e criou um império bilionário com a venda de produtos e brinquedos de seu personagem.

Rorscharch foi em busca do restante do grupo: o casal Jon Osterman, o Doutor Manhattan (Billy Crudup) e Laurie Juspeczyk, a Espectral II (Malin Akerman). Dr. Manhattan era um cientista que após entrar em contato com uma grande carga de radiação desenvolveu poderes ilimitados, capaz de manipular qualquer matéria ou átomo, além de ter se torando indestrutível. Espectral II é uma mulher que se tornou uma lutadora e seguiu os passos de sua mãe, que fez parte de uma formação mais antiga de heróis.

Antes dos Watchmen houve uma liga anterior chamada os Homens-Minuto, formada por um grupo de polícias fantasiados que decidiram combater o crime fora do expediente de trabalho. Em um primeiro momento foram bem aceitos pelo governo e pela população. No decorrer do tempo alguns morreram, outros foram assassinados e alguns se aposentaram. A partir de então foram substituídos, o único a participar dos dois grupos foi o Comediante. Apesar da idade, ainda estava em boa forma.

No transcorrer da história contam-se alguns capítulos de ambos os grupos. Durante a guerra do Vietnã, o Comediante e o Dr. Manhattan trucidam implacavelmente os vietcongs. Comediante engravidou uma vietcong, após o término da guerra com o triunfo americano, a moça veio falar com ele e pedir amparo. Após ela feri-lo no rosto, depois de um desentendimento, ele a mata com um tiro na barriga. Em uma ocasião, tentou abusar da mãe de Espectral II, mas foi impedido por um dos Homem Minuto. Em uma manifestação contra o governo, atirou a esmo nos civis americanos.

Rorschach continuou com a investigação, seguindo o rastro deixado pelo Comediante, porém caiu em uma cilada e foi preso. Aliás, ambos os personagens são antagônicos, enquanto o herói assassinado possuía uma natureza mais perversa, Rorscharch é um moralista. Despreza duramente a prostituição e a sexualidade de uma forma ampla, entretanto é tão violento quanto Comediante. Se necessário, pratica a tortura tranquilamente até obter a informação desejada. Coruja e Espectral II também arranjaram confusão, ao enfrentar uma gangue e não os poupam de um banho de sangue.

Depois de tirarem Rorscharch da prisão, o Coruja e Espectral II, juntamente com o perturbado mascarado, continuaram a busca e chegaram na sede de seu antigo aliado Ozymandias. Enfim descobrem a terrível verdade, Ozymandias foi o responsável pela morte do Comediante, na tentativa de encobrir um plano ainda mais terrível. O assassino arquitetou algo ainda mais maquiavélico, a partir de uma manipulação com o Dr. Manhattan, utilizou seus poderes astronômicos para eclodir explosões atômicas fulminantes em várias cidades populosas da Terra.

Ozymandias concebeu esse plano para restaurar a paz mundial e acabar com guerra fria. Ao destruir algumas cidades e matar 15 milhões de pessoas, o Dr. Manhattan passou a ser o novo inimigo da humanidade, obrigando assim Estados Unidos e União Soviética a juntarem forças novamente. Como na Segunda Guerra Mundial, em que se aliaram para derrotar o nazismo. Coruja e Rorscharch tentaram impedir, foram até a base secreta de Adrian na Antártica, mas chegaram tarde. Além disso eles não eram páreos contra a força e agilidade dele. Dr. Manhattan ficou colérico com a manipulação de Ozymandias, contudo, a explicação dele foi convincente e pacto entre todos os Watchmen foi firmado. Rorscharch se negou a esconder a conspiração, por não saber lidar com o fato e não poder contar o ato diabólico, e pediu para ser trucidado pelo Dr. Manhattan, restando apenas o seu sangue na neve.

Desmascarando o altruísmo

Watchmen pode ser considerada uma obra revolucionária nos quadrinhos por abordar o heroísmo sob uma nova ótica. A imagem ingênua dos super-heróis como benfeitores altruístas foi quebrada. Ao longo do filme, Comediante comete uma enorme lista de perversidades, sobrepondo a sua vontade acima do bem comum. Rorschach, apesar de não ter o mesmo grau de sadismo de seu companheiro, se julga no direito de impor a sua moral a todo custo, projetando seu lado sórdido e vil sobre o mundo. Em muitos momentos enquanto narra o seu diário, deposita toda a sua crueldade na sociedade, permanecendo em uma condição descente e quase santificada. Sua visão de mundo se mostra distorcida e paranoica em muitos momentos, comportando-se de uma forma transtornada e um tanto delirante.

Coruja e Espectral II mostraram ainda uma certa ingenuidade, como se realmente pudessem salvar o mundo de todas as desgraças e buscar compulsivamente a realização plena do sonho americano. Apesar da inocência, lutam ferozmente sem descartar a violência. Dr Manhattan chegou em um grau de onipotência que se tornou um tanto melancólico, mantendo-se apático e distante das pessoas, como se não tivesse restado empatia nele. Sua relação com Espectral II desmoronou, a moça já não suportava mais a sua frieza e distanciamento. Pouco depois ela engatou um relacionamento com o Coruja. O cientista se tornou tão poderoso e inteligente, que chegou ao ponto de sua racionalidade o dominar por completo.

O plano de Adrian, apesar de ser uma solução por um lado, “matar milhões para salvar bilhões”, é maquiavélico e questionável. Esse é o ponto de como o excesso de racionalidade pode ser perigoso, a lógica utilitarista, ainda que se preocupe com a maioria, é capaz de sacrificar uma minoria sem grandes problematizações éticas. Essa é a mesma lógica que defende a pena de morte e a eliminação dos cidadãos que não são úteis para a sociedade. Ozymandias pode ter salvado a humanidade, com o embasamento no argumento de que a natureza humana é selvagem e precisa de um inimigo para deslocar os impulsos destrutivos. Entretanto, o preço pago foi bem alto.

Além disso, a possibilidade da guerra nuclear não era uma garantia, apenas uma especulação, ela não chegou a eclodir no mundo real. Felizmente, o medo do contra-ataque foi o suficiente para nenhuma das potências bélicas iniciar a catástrofe. Talvez o vazamento radioativo da usina nuclear de Chernobyl, ocorrido em 1986, tenha servido de alerta sobre a capacidade de destruição de uma bomba atômica. Não apenas com a explosão, mas também com os danos causados pela radioatividade, devido a sua grande facilidade em se propagar pela atmosfera.

No fundo, o altruísmo não existe do ponto de vista filosófico em realizar o bem sem que haja algo em troca. Mesmo o maior dos benfeitores recebem algo e muitas vezes não é algo material. Ao realizar uma boa ação, é comum sentir-se feliz e satisfeito consigo mesmo, neste sentido, quem faz o bem recebe o bem. Não por uma questão espiritual, cósmica ou pela chamada lei do retorno.

Ao ajudar alguém ou alguma causa, é natural sentir-se enobrecido de alguma maneira. Justamente, esse é o ganho, a satisfação que os heróis sentem. O narcisismo do ego engrandece com o reconhecimento do outro por um ato de coragem e sacrifício. Apesar de muitas vezes o narcisismo ser relacionado com a vaidade, o egoísmo e a indiferença, por outro lado, ele é essencial para o aparelho psíquico. Pois é ele que permite as pessoas se sentirem minimamente seguras de si, além da constituição dos aspectos positivos e saudáveis do ego.

Nesse sentido talvez um dos poucos heróis que é consciente e sincero consigo mesmo com a sua faceta narcísica é o Homem de Ferro. Tony Stark pode ser arrogante em muitas ocasiões, mas ao menos reconhece que salvar o planeta é um ato do qual se orgulha e adora exibir para a mídia. O seu sacrifício mortal no último filme dos Vingadores (Ultimato, 2019) é uma prova do seu amadurecimento, não por deixar de ser narcisista, mas por reconhecê-lo e manifestar um último ato de alteridade, do qual ainda não tinha adquirido no início de sua saga.

A mãe de Espectral II, em alguns momento do filme, se apresenta depressiva e alcoólatra. Depois de sua aposentadoria, sua vida perdeu o significado, nos diálogos com o seu marido diz que quando era uma heroína, era jovem, bonita e tinha sonhos. Porém, o tempo lhe roubou a juventude, a vitalidade e a sua força. Esse pode ser mais um argumento do ganho narcísico ao se realizar a benevolência. Um dos maiores feitos de Watchmen foi o de expor os aspectos humanos, onipotentes e infantis de seus heróis, além de mostrar como aparentes boas ações podem ser destrutivas e enganosas.

O problema do altruísmo não é a busca pelo bem comum ou pela generosidade com o próximo, mas ter a crença equivocada de que não se ganha nada ao ajudar alguém. Como diria Freud: “Poderíamos ser muito melhores se não quiséssemos ser tão bons”.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *