Análise do filme Doutor Sono – contém spoilers
“O MUNDO É UM LUGAR FAMINTO”
Revisitando Danny Torrance
Depois de quase 40 anos do lançamento de O Iluminado (1980), dirigido pelo antológico Stanley Kubrick, a história de Danny Torrance (Ewan McGregor) ganhou uma continuação à altura: Doutor Sono (2019), dirigido por Mike Flanagan, baseado no livro foi escrito por Stephen King em 2013.
A história inicia com Danny ainda criança e traumatizado com os terríveis eventos ocorridos no amaldiçoado hotel Overlook. Após uma conversa com Hallorann, seu amigo e uma espécie de guia espiritual, ele aprendeu uma forma de lidar com os fantasmas que o atormentam. Para se livrar de seus demônios, imaginou uma caixa e ao se deparar com eles os colocou dentro dela e os trancou definidamente.

Apesar do sucesso do encarceramento dos fantasmas, Danny adquiriu problemas com o alcoolismo. Com a intenção de se livrar da sua iluminação e cortar laços com os espíritos, passou a beber e ter uma vida errante. Essa operação de trancar os fantasmas em sua cabeça, pode ser uma metáfora do esquecimento, chamada por Freud de recalque.
Esse mecanismo é, por excelência, o mais utilizado na neurose, que consiste na cisão entre o conteúdo traumático do ocorrido (a representação) e o afeto gerado por ele. Ainda que o inconsciente se esforce em tentar esquecer certos conteúdos, o afeto relacionado a um trauma, permanece. Não é à toa que Danny desenvolveu o sintoma em beber compulsivamente, como uma maneira de lidar com o seu sofrimento. Ao tentar esquecer o seu sofrimento e afogar as mágoas na bebida, ele apenas se fixa ainda mais e o perpetua.
Um dia, decidiu mudar de cidade e recomeçar a sua vida. Danny fez amizade com Billy, que lhe ajudou a entrar nos alcoólicos anônimos e arranjou o trabalho de enfermeiro. Não tardou para Danny desenvolver uma nova função no hospital, pouco antes dos pacientes morrerem, o protagonista permanecia com eles em seus derradeiros instantes. Devido a esse novo cargo, rapidamente foi apelidado de Doutor Sono.
Perversão, adicção e o grupo do Nó Verdadeiro
Paralelamente, Doutor Sono apresenta novos personagens, o grupo Verdadeiro Nó, liderado por Rose Cartola (Rebecca Ferguson). Assim como Danny, todos desse bando possuem alguma iluminação. Obcecados em prolongar suas vidas, eles se alimentam da “iluminação” ou aura de outros iluminados, principalmente crianças. De uma forma bastante perversa, eles torturam e assassinam suas vítimas lentamente, pois quanto maior for o terror da vítima mais pura será a qualidade da aura.
O bizarro ritual pode ser visto como uma metáfora da perversão, pedofilia e adicção (vício ou compulsão por certas substâncias e [ou] comportamentos destrutivos). A forma como inalam a iluminação das vítimas é semelhante a utilização de cocaína, por exemplo. Além disso, há uma forte sexualização ao compartilharem entre si a aura das vítimas com beijos, algo semelhante a sexualização dos vampiros ao morderem pescoços. Assim como viciados em drogas, o grupo permanece por séculos isolados do convívio com outras pessoas. Afinal, estão focados apenas em como conseguir a próxima aura. Rose, além de líder, é o radar do grupo. Por meio de seu dom, consegue detectar as vítimas há milhares de quilômetros.
Ainda no início de Doutor Sono, o sádico grupo recruta uma nova integrante, chamada de Mordida de Cobra. O grupo se interessou por ela, devido ao seu grande dom em hipnotizar as vítimas, o que facilitaria o trabalho em capturá-las. Rose a convenceu com a proposta de retardar o envelhecimento, graças a inalação da iluminação. Para entrar no grupo é necessário um ritual de passagem, pouco depois, Mordida de Cobra já percebe a sua nova condição, sente como se já não estivesse mais viva.
Essa cena é uma ótima representação da condição perversa do adicto, pois ao viver em função de uma substância, este sacrifica a sua condição de sujeito, assim como o seu desejo. Praticamente mais nada lhe interessa a não ser um certo objeto. Devido a esse empobrecimento psíquico, o adicto também se coloca em uma condição objetal. Ilusoriamente, ele acredita ser onipotente desafiando os limites da vida e da morte, devido a força enganosa que a substância lhe proporciona. O termo adicção possui raízes no latim, em Roma antiga, os adictos eram os endividados que se tornavam escravos por não conseguirem quitar suas dívidas. De fato, o adicto moderno é um escravo da droga e um endividado com o seu próprio desejo.
A redenção do Doutor Sono
Uma vez, enquanto o bando do Verdadeiro Nó sacrificava um garoto, uma poderosa iluminada chamada Abra (Kyliegh Curran) os observava. Rose a notou e direcionou o seu radar para ela, afinal sua aura seria um prato cheio para o grupo. Anos antes, ela estabeleceu uma relação telepática com Danny. Após descobrir o bando e seus terríveis atos, ela foi encontrar pessoalmente o protagonista. Em um primeiro momento, ele a aconselhou a se afastar deles e utilizar a sua estratégia em se manter “apagado”. Hallorann contrariou Danny e disse que ele deveria ajudar Abra em sua missão, pois assim como ele também foi auxiliado em administrar os seus demônios, era a vez de ele retribuir.
Com a ajuda de Billy, Danny organizou uma armadilha para o bando e utilizou a obsessão deles por Abra como isca. A garota criou uma ilusão de que estava sentada em um banco, graças a isso o grupo se aproximou e então a dupla disparou matando quase todos os integrantes. No final do confronto, Billy e o pai de Abra foram assassinados e Abra foi sequestrado pelo Corvo com a ajuda de Rose.
Enquanto a garota estava no carro dopada, Danny entrou em sua mente e fez com que o sequestrador batesse o carro em uma árvore, o que o matou instantaneamente. Apesar de quase todo o grupo do Nó Verdadeiro ter sido eliminado, ainda restava a mais poderosa deles, Rose Cartola. Ela estava enfurecida com a dizimação de seu bando e principalmente com a morte do Corvo. Ela saiu em busca de um tudo ou nada contra os seus oponentes e inalou todos os vapores reservas do estoque. Danny sabia que ela viria atrás deles e a atraiu para o pior local que ele conhecia: o amaldiçoado hotel Overlook.
O ato final de Doutor Sono não poderia ser mais grandioso, pois o hotel foi recriado exatamente como o de O Iluminado de Kubrick. Antes da batalha final, Danny precisou revisitar os fantasmas do passado, inclusive o pior de todos: seu pai, Jack Torrance. Enquanto estava no bar, teve um rápido diálogo com ele, em uma espécie de déjà vu. Dessa vez, seu pai era o bartender e o tentou seduzi-lo a beber e a matar Abra.
Pouco tempo depois, Rose encontrou o hotel. Danny e Abra aprontaram outra emboscada, na tentativa de prendê-la com a caixa, o mesmo truque ensinado por Hallorann. Eles permitiram que Rose entrasse na cabeça deles e tentaram distraí-la com o cenário do labirinto do jardim. Entretanto, ela percebeu o truque e conseguiu escapar.
Em seguida, Abra correu e Danny e Rose lutaram corpo a corpo. Ele tentou acertá-la com o machado, mas em um contragolpe, ela acertou o machado em sua coxa o ferindo gravemente. Rose tentou sugar o seu vapor, mas, Danny abriu todas as “caixas” mentais dos monstros que o perturbaram por anos, a vilã rapidamente foi aniquilada por eles. O que talvez seja uma metáfora do quanto pode ser aterrorizante escutar e simbolizar os traumas alheios.Apesar da vitória, Danny também foi contaminado pelos próprios fantasmas e por um curto momento se tornou o próprio pai. Tentou matar Abra com o mesmo machado, mas a garota conseguiu o impedir. Depois de retomar a consciência, pediu para a garota fugir da casa. Danny, em um último ato de sacrifício, foi para o porão do hotel e ligou as caldeiras, causando um enorme incêndio e queimando junto com o Overlook. Finalmente encontrou a paz e sua mãe em um outro plano espiritual, enquanto Abra foi achada pela sua mãe.
É interessante notar a relação de Danny com a bebida, ainda que a tenha utilizado para “apagar” o seu dom, talvez haja outras razões. Danny, em alguns momentos do filme, diz não ter muitas lembranças de seu pai, além das em que estava alcoolizado. Talvez beber seria um dos poucos traços de identificação com o pai. Em umas das reuniões dos alcoólicos anônimos, ao receber uma medalha por estar sem beber há um bom tempo, ele homenageia o pai e diz que de uma certa forma, o prêmio seria para Jack também. Além disso, beber seria uma forma de se penitenciar por ter deixado o pai morrer congelado no jardim do Overlook. O que representaria assim a culpa do sobrevivente. Por fim, beber para se esconder, seria apenas uma racionalização.
Doutor Sono e a miséria do mundo
Doutor Sono inevitavelmente foi comparado com o seu antecessor, e bastante criticado pelo excesso de referências a obra de Kubrick. Entretanto, é importante distinguir a diferença de estilos de terror/suspense entre os dois filmes. Kubrick se preocupou em tornar o Overlook um lugar terrível e imprevisível, mas com um toque de alucinação. Além disso, buscou explorar ao máximo instabilidade psicológica de Jack Torrance, com uma inesquecível atuação de Jack Nicholson.
Já Mike Flanagan, se focou em mostrar a perversão do mundo e o quanto as pessoas são capazes de ser amorais e maquiavélicas em nome da satisfação dos próprios impulsos. Nesse sentido o bando do Nó Verdadeiro, foi muito bem representado, para eles não havia limites éticos em aspirarem o vapor de suas vítimas. Seus rituais de sacrifício se mostravam implacáveis e com requintes de crueldade. A semelhança com o abuso sexual infantil é terrível.
Doutor Sono não se preocupa em causar sustos, mas mostrar a voracidade do mundo e o quanto as relações humanas podem ser frágeis e pervertidas. O grupo do Nó Verdadeiro, apesar de ser representado de uma maneira inumana, têm seus impulsos e sua perversidade mostrados de forma humanas. Ao menos, há também o forte vínculo de Danny com Billy e com Abra, baseados na alteridade e cuidado, servindo como um contraponto da miséria da relação entre os membros do funesto bando.
Lacan, em uma grande parte de sua obra, distinguiu o desejo do gozo. Para o psicanalista, o desejo é uma barreira contra o gozo. Ainda que o desejo também exija algum grau de satisfação, ele permanece preso à falta. Ou seja, o desejo nunca é saciado por completo, apenas parcialmente. O gozo, por sua vez, é desmedido, busca uma descarga completa do prazer e um flerte com a morte. O desejo é atravessado pela castração, consequentemente é forjado pela ética, pela moral e pela Lei. O gozo é esvaziado de sentido, permanece fora da linguagem e de representação.
O grupo do Nó Verdadeiro, claramente é a concretização do gozo, são verdadeiros “outsiders”, fixados na caça por novos vapores. Eles se mantêm apartados da sociedade e de qualquer tipo de regra que não seja a deles. Ao objetificar ao extremo as relações, eles também se tornam objetos esvaziados de subjetividade e desejo.
Na natureza, por uma questão de instinto de sobrevivência, os seres vivos devoram uns aos outros de acordo com suas respectivas teias alimentares. No que se refere a humanidade, principalmente na perversão, a preocupação não está na necessidade, mas no gozo, no excesso. É justamente dessa fome que Doutor Sono trata, na busca incessante e maquiavélica pela onipotência, por uma certa imortalidade e o descaso com a alteridade e o Outro (a Lei simbólica). Talvez o grande trunfo do filme esteja em transmitir o terror em ser devorado por esse mundo pervertido.